sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Damfjord - BMR




Damfjord
Memórias de um naufrágio na Ilha do Sal

1.Desde criança, ouvi os mais velhos falarem do Damfjord, um barco dinamarquês que encalhou na Praia da Fragata, mais tarde também conhecida por Praia de Danfior (é assim que o povo pronuncia o nome do barco!), na costa leste de Santa Maria.
Esse encalhe – à semelhança da maior parte dos naufrágios nas demais ilhas de Cabo Verde –, constitui um marco na história do Sal, recordado durante muitos anos e transmitido às gerações mais novas, pelo impacto positivo que, por ironia da história, esse acidente teve na vida das pessoas e da ilha. Tanto é assim, que um octogenário que vivenciou o acontecimento, enquanto jovem, afirma: “Danfior é que levantou a Ilha do Sal”.
Corria o mês de Março do ano de 1948 e Cabo Verde atravessava uma das mais graves crises da sua história, a célebre crise de 1947, relembrada pelos horrorosos relatos dos sobreviventes que conviveram com a miséria e a morte de dezenas de milhares de cabo-verdianos, particularmente nas ilhas agrícolas, e imortalizada pela canção “Fomi 47”, de Codé di Dona.
Apesar de a Ilha do Sal, na altura, não depender, em grande medida, da agricultura, pois a base da sua economia era a indústria do sal, a verdade é que, segundo os mais velhos, a situação também era difícil. A indústria salineira estava praticamente paralisada por falta de exportação, não absorvendo a mão-de-obra disponível; os militares portugueses que ali estiveram estacionados durante a Segunda Guerra Mundial e que contribuíam para a animação da economia local tinham deixado a ilha; o aeroporto ainda encontrava-se encerrado, na sequência da decisão de Portugal em proibir a passagem dos aviões italianos da LATI, devido à guerra; a pesca escasseava; e, para completar o quadro, o abastecimento de géneros alimentícios era irregular, registando-se rupturas frequentes e consequente encarecimento dos produtos básicos.
Em resumo, economicamente a ilha estava paralisada, com implicações graves a nível social. Basta dizer que para além de carência alimentar – havia gente que não acendia o fogão –, registavam-se casos de pessoas que nem roupas tinham para se vestirem. Andavam envoltas em lonas de serapilheira destinadas ao ensaque do sal.
É com esse pano de fundo, decorrente de um contexto de extrema precaridade sócio- económica, que se deve compreender a importância do encalhe do Damfjord para a população do Sal. Uma “bênção de Deus” que salvou o povo da miséria, segundo a opinião geral.

2. As pessoas ainda vivas, que na altura eram adolescentes ou jovens, hoje septuagenárias ou octogenárias, recordam-se bem do naufrágio do Damfjord, pois vivenciaram-no intensamente. Entretanto, um observador privilegiado do referido naufrágio foi Mário Rogério Afonso Leite, Administrador do Concelho à época e que, por razões óbvias, acompanhou de perto todo o processo. É ele quem nos fornece as primeiras informações sobre o evento, ao escrever no Diário da Administração, o seguinte:
“No dia 9 de Março um vapor dinamarquês amanheceu encalhado na praia denominada da Fragata. Ainda não se sabe que carga tem. Pus à disposição da Alfândega, para efeito de guarda, dois cabos de polícia”. “No dia 10 estive na Praia da Fragata. Começaram a sair ao longo da praia grãos de café, barris, tambores e outras coisas. Auxiliei pessoalmente a Alfandega. Montou-se guarda. A tripulação desembarcou-se em Santa Maria às 9 horas. No dia 11 continuam a sair coisas do vapor encalhado”.
O mesmo Administrador escreve que os tripulantes “devem ser repatriados sem demora pois na ilha não há alimentação conveniente para eles”. Efectivamente, o repatriamento ocorreria poucos dias depois uma vez que, acrescenta a mesma fonte, “um rebocador holandês saiu de Dakar no dia 15 e chegou ao Sal no dia 17, tendo zarpado no mesmo dia com os 28 homens”.
Carlos Ramos diz que, em Santa Maria, a tripulação ficou alojada na sede da União Nacional, local bastante espaçoso e, portanto, com capacidade para acolher tanta gente. Por sua vez, Margarida Spencer informa que, quanto à alimentação, os marinheiros foram distribuídos por várias casas particulares, pois não havia hotel ou pensão onde pudessem comer.
Emanuel Charles D`Oliveira, bom conhecedor dos mares de Cabo Verde, no livro “Cabo Verde na rota dos naufrágios”, afirma que Damfjord é um “cargueiro de 7.000 toneladas |que| carregava óleos diversos, café, zinco enriquecido e 4.000 toneladas de cacau. Vinha de Dakar para S. Vicente para se abastecer e, mais tarde, seguir para Europa”.

3. Tratando-se de um acidente ocorrido na jurisdição marítima, coube ao Chefe da Delegação Aduaneira do Sal supervisionar os trabalhos de salvamento da carga que se encontrava a bordo, assim como das mercadorias que o mar ia arrojando à praia, segundo as instruções recebidas da Alfandega de S. Vicente.
Entretanto, em termos operativos, os trabalhos de salvação da carga eram dirigidos pelo Sr. Edmundo Gomes Nascimento, sócio-gerente da Firma J. A. Nascimento, sedeada em Santa Maria, dedicando-se ao ramo da pesca e da indústria conserveira. Segundo o Administrador Mário Leite, a pedido do Sr. Nascimento, e com a autorização da Administração local, chegaram no dia 7 de Abril, da Boa Vista, 26 homens para trabalharem no barco, na recuperação da carga. Rudolfo Évora confirma, efectivamente, que vieram homens e botes da Boa Vista para trabalhar no barco e cita nomes de pessoas conhecidas que acabaram por fixar residência em Santa Maria. O recurso à Boa Vista, possivelmente, se deveu ao facto de, na Ilha do Sal, não haver marinheiros e botes em número suficiente para fazer face às prementes necessidades do naufrágio. É certo que botes e marinheiros do Sal também trabalharam na salvação da carga, pois Gastão Barros Ramos, da Palmeira, informou-me que participou com o seu bote na operação, durante duas semanas.
As operações terão decorrido de Março a Julho, altura em que “Edmundo Nascimento recebeu ordens de S. Vicente do "grupo de salvação" para suspender os trabalhos”, possivelmente, porque já não havia muito mais a fazer. Entretanto, em Novembro, “entregou a direcção dos trabalhos de salvação da carga ao Sr. Jules Bonnaffoux, Director da Salins du Cap Vert e Agente Consular da França”. É de supor que, nessa altura, os trabalhos de salvamento já eram residuais.
Depois de recuperada, dos porões ou do fundo do mar, devido aos rombos no casco, a carga seguia por botes para o cais de Santa Maria, onde era descarregada e transportada por trabalhadores para o “Cá Piscador”, um espaço pertencente a J. A. Nascimento, situado ao lado do actual polo escolar Kim Barbosa. Consta que o transporte de mercadorias do cais para o local de armazenagem era um trabalho árduo, uma vez que os sacos de café e cacau eram pesados, pois estavam molhados, exigindo muito esforço da parte dos trabalhadores.
Com a carga salva e armazenada em Santa Maria, era preciso dar-lhe o devido destino. Segundo o administrador do Concelho “no dia 6 de Outubro chegou o vapor "Lunda" para receber os salvados do Damfjord, os quais com a autorização superior vão ser repatriados”. Ou seja a carga (pelo menos a maior parte) foi reembarcada. Entretanto, uma parte, recuperada pela população na praia, não obstante a presença e a vigilância dos guardas da Alfândega, teria ficado no Sal, animando a economia local e ajudando o povo a enfrentar a crise.

4. Na verdade, o naufrágio do Damfjord dinamizou economicamente a ilha, pois os proprietários dos botes, os marinheiros, os mergulhadores, os trabalhadores, contratados pelo responsável pela salvação da carga, tiveram ocupação remunerada durante alguns meses, podendo fazer face às suas necessidades. Por outro lado, as mercadorias lançadas à praia, sobretudo café, cacau, chocolate, óleos, foram recolhidas pela população, para o seu consumo ou venda aos comerciantes. Estes, compraram os produtos por baixo preço e venderam-nos depois com elevadas margens de lucro, rentabilizando, e muito, o investimento feito. É voz corrente que “fizeram a vida”. As pessoas puderam “arrumar as panelas” e quem antes escondia a nudez com recurso a sacos de serapilheiras, passou a vestir-se com chita, dril ou caqui, adquiridos no comércio local, retomando o traje de costume. Enfim, segundo relatos, homens e mulheres, adultos e crianças não tiveram mãos a medir na costa leste de Santa Maria, a rocegar e a amontoar grãos de café ou a transportar volumes (caixas, bidões, barris) que deram à praia, contendo produtos que lhes eram úteis, transformando o naufrágio numa verdadeira MÓIA, na linguagem popular. Para ilustrar a quantidade de mercadorias saídas na praia, diz-se que a parte das ondas que normalmente é branca, estava preta, pejada de café.

5. Como costuma suceder em eventos de grande impacto nas pequenas comunidades, a uma criança nascida nessa altura foi posto o nominho de Caqueja, corruptela da palavra “dinamarquesa” da nacionalidade do cargueiro encalhado, o que confirma a intensidade com que a população viveu o naufrágio de “Danfior”.
De realçar ainda que a presença de 28 marinheiros estrangeiros em Santa Maria, uma Vila pacata com uma população bem reduzida, durante uma semana, terá tido um forte impacto junto da comunidade local. “No dizer de Cousteau, Santa Maria parecia o fim do mundo”, escreve E. Charles D`Oliveira.
6. Afiança ainda Emanuel Charles D`Oliveira que, Damfjord “repousa a 8 metros de profundidade” na praia da Fragata ou, simplesmente, na praia de Danfior. Garcês Jimié Vera Cruz, marinheiro de barco de pesca, durante muito tempo, sustenta que os destroços do barco são visíveis, no fundo, aos olhos de quem navega no local.
Concluindo este breve exercício de rememoração, é de recordar que o naufrágio do Damfjord, sobretudo pela “móia” que proporcionou, permitiu aos salenses, a um tempo, enfrentar a crise e viver uma importante página da história da ilha, que importa ser preservada, aprofundada e divulgada.

Julho de 2014

Basílio Mosso Ramos

P.S.:
Estes apontamentos têm como fontes a memória colectiva da ilha, na sua tradição oral – ainda há muita gente que se recorda do caso, sendo de destacar, entre outras, as pessoas citadas no texto como Rodolfo Évora, Garcês Jimié Vera Cruz, Carlos Ramos, Isaura Isabel da Graça, Artur Estrela, Margarida Spencer, Luís Lopes –, o Diário da Administração do Concelho, sendo Administrador Mário Rogério Afonso Leite, e a obra de Emanuel Charles D`Oliveira “Cabo Verde na rota dos naufrágios”.
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