Os cabo-verdianos, particularmente os que viajam São Vicente-Lisboa, acabaram ficando gravemente penalizados com a concessão em exclusividade dessa carreira aérea à TAP. Essa companhia começou a entrar no país com pezinhos de lã, aliciando-nos com passagens quase ao custo da chuva. Porém, mal se viu única senhora dos nossos céus, não só carregou nos preços de forma indecente, como também inventou diversos outros métodos de descaradamente meter a mão nos bolsos dos seus passageiros, primeiro, através da venda de seats, que alega que são assentos de espaço mais alargado, mas que na realidade são comuns e iguais a qualquer outro que poderia ocupar-se sem acréscimo de qualquer pagamento; segundo, cortando na refeição a bordo. Dou dois exemplos: paguei a mais à volta de 120 euros para ter o direito de ocupar uma cadeira onde pudesse estender as pernas numa viagem São Vicente-Lisboa-Rio de Janeiro. Embolsaram a quantia e atribuíram-me um lugar exatissimamente igual a qualquer outro.
Essa viagem aconteceu no dia 3 de setembro passado. Com partida às 12.30, é óbvio que o passageiro vai a contar com almoço. Porém, é surpreendido pelo comissário anunciando que será servida uma refeição ligeira, ainda que seja verdade que enquanto ele fala um suave e agradável odor a comida quente atravessa o avião. No entanto, o que nos é oferecido a seguir é uma minissanduíche, um minipão barrado de uma pasta que até ao último pedaço não consegui identificar o que estava a comer. Mas era tão ínfima a sandes, que na minha terra se diria insuficiente para tapar um dente furado. Francamente escandalizado, perguntei à hospedeira, Mas é isso que servem como refeição, mesmo dito ligeira? Visivelmente incomodada, ela tartamudeou uma explicação que o barulho não me deixou ouvir. Já tinha comido a sandes, mas continuava com fome. Posso pedir outra?, perguntei ao comissário. Com certeza, respondeu apressado e partiu disparado. Pensei que em busca da sandes, mas desesperei na espera. Aí talvez uma hora passada, ele apareceu a perguntar-me se queria uma sandes ou duas. Já não queria nenhuma.
Acreditando que essa frugalidade no servir era uma geral política da TAP, na viagem Lisboa-Brasil preveni-me com um lauto jantar antes do embarque. Erro meu! Foram servidas duas refeições, ambas fartas. Pelo que conclui que a dieta de minissandes é exclusiva para os cabo-verdianos que, pelo menos a partir de São Vicente, estão condenados a viajar na TAP por falta de alternativa.
Não me conformo, e digo a mim mesmo que alguma autoridade, seja cabo-verdiana seja portuguesa, devia ter o poder de nos livrar dessa situação humilhante, mas lembro-me a seguir de que é o partido que está no poder em Cabo Verde que nos entregou às duas companhias aéreas, ambas estrangeiras, que, uma domesticamente, outra internacionalmente, estão a tratar-nos como se fôssemos coisas. E é tanto mais ironicamente doloroso, quando nos lembramos que o MpD nasceu exatamente a combater o regime de partido único, aliás com um slogan apelativo: em 1975 votamos num único partido, mas não no partido único!
Pois bem, é esse mesmo partido que não hesitou em deixar morrer a companhia nacional para nos entregar às mãos de duas empresas estrangeiras, negociando essas concessões em moldes tão obscuros e secretos que já há muito quem duvide se existiu de facto alguma negociação ou contrato.
O que mais apetece é desafiar os cabo-verdianos a boicotar as carreiras da TAP e da BINTER. Porém, e infelizmente, são as únicas vias de se sair das ilhas. E foi o nosso governo que nos colocou nessa situação de dependência, reféns de duas companhias cujo único escopo parece ser amealhar o maior lucro a qualquer preço. E é inaceitável que os poderes públicos não disponham de meios para controlar de forma eficaz esses dois monopólios que em última instância desacreditam o partido que surgiu em Cabo Verde em nome do pluripartidarismo.
Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018
(Fonte: Diário de Notícias, In DN.PT
(Fonte: Diário de Notícias, In DN.PT